quinta-feira, 30 de junho de 2011

Macunaíma (1969)


Macaunaíma, «herói de nossa gente» como é baptizado pelos seus dois irmãos e pelo narrador, nasce de um livro escrito por Mário de Andrade em 1928 e que foi adaptado ao Cinema por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Este filme, que é a segunda longa-metragem de ficção do realizador, é a minha proposta para terminar o ciclo dedicado ao Cinema do Brasil.
O herói de nossa gente mais não é do que um anti-herói, que representa o povo brasileiro e o seu multicuralismo. Nascido negro nos confins da selva, Macunaíma é preguiçoso e pouco faz para ajudar os outros. Mais tarde, na sequência da morte da mãe, parte para a grande cidade de São Paulo com os seus dois irmãos mais velhos. Pelo caminho Macunaíma torna-se branco e quando chega à grande cidade apaixona-se por uma guerrilheira com quem passa o tempo a ‘brincar’ (leia-se fazer amor), uma das muitas maravilhas que o fascinam na grande cidade.A adaptação cinematográfica da obra de Mário de Andrade faz lembrar um pouco os romances do realismo mágico, género muito próprio da América Latina, sobretudo nos países de língua espanhola. Ao mesmo tempo, o filme é também uma crítica à sociedade que aponta em inúmeros sentidos, alguns dos quais apenas se compreendem conhecendo a realidade da época.
Goste-se ou não, espero que se divirtam tanto quanto eu me diverti a ver este filme de Joaquim Pedro de Andrade.


O Projeccionista / A Última Sessão

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)

Não é de Deus, nem do Diabo, a Terra é do Homem. Uma vida sofrida, numa terra desolada, comandada por coronéis e homens da igreja, marcada pelo desespero e pela seca. O que resta da esperança? A esperança foi roubada. Para Manoel não resta nada a não ser pegar a mulher e ir embora, ir para procurar uma vida melhor, deixando a miséria para trás.
A primeira vez que vi Deus e o Diabo, foi na Faculdade de História da USP numa sessão especial. Glauber Rocha explodiu dentro de mim, mistura de faroeste, drama caboclo, Villa Lobos e Sergio Ricardo, o filme me conquistou. Numa época de Ditadura Militar, nada como a contestação ao poder e essa contestação foi total. Contestação ao poder civil e religioso.
Glauber é um daqueles diretores que não fazem concessão a nada, pegam uma câmera na mão e filmam o que sentem, de forma absoluta, de vez em quando com frieza outras vezes com calor, o que fica para nós é um sentimento de angustia e revolta, o mundo como ele é.
O que é interessante em Deus e o Diabo é que a dicotomia está no mesmo plano, não existe Deus bom e nem Diabo que o carregue. Os dois fazem parte da mesma esperança e no fim ficamos com a sensação de que a esperança não existe no plano místico, ela está no próprio homem. Assim o filme tem um pouco de tudo: é um épico social; um combate ao fanatismo religioso; uma critica ao misticismo e uma aula de História. Caminha entre os lideres religiosos e a saga do cangaço, enveredando pela ótica do banditismo social e da epopéia Histórica da Guerra de Canudos. Você pode até não gostar, mas é impossível ficar indiferente.

Danilo Donzelli Alves / A falha de Obi-Wan

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Limite (1931)

Arranca hoje o primeiro ciclo da Tertulia de Cinema dedicada a um país. A escolha inicial recaiu sobre o Brasil. Na minha opinião essa é uma escolha que faz sentido por, sendo o maior país de lingua portuguesa, com o qual temos uma enorme ligação e que históricamente possui um grande nivel de produção cinematográfica de qualidade, quantos de nós podemos dizer que conhecemos bem a sua cinematografia, para além de um número muito restrito de filmes? Para mim seria então importante que este ciclo nos ajude a desenvolver de alguma forma a vontade de explorar a obra de grandes realizadores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rogério Sganzerla, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Peixoto, Eduardo Coutinho, Leon Hirszman, Júlio Bressane, Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Ruy Guerra, Humberto Mauro, Hector Babenco, Arnaldo Jabor, Carlos Reichenbach, Ozualdo Candeias, José Mojica Marins, Walter Lima Jr., Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Walter Salles, Andrea Tonacci, Roberto Farias, Carlos Manga, Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri ou Domingos de Oliveira, para nomear apenas alguns.
A primeira obra a ser apresentada neste ciclo será “Limite”, o único filme concluído por Mario Peixoto, filmado em 1930 quando o realizador tinha 22 anos de idade. Um filme que, tendo estreado em 1931, não chegou a ter distribuição comercial e cuja única cópia esteve em risco de destruição em 1959 por deterioração, mas que, graças a um trabalho de restauro durante os vinte anos seguintes, foi recuperado e alcançou finalmente a consagração em 1988, quando foi eleito pela Cinemateca Brasileira como o melhor filme brasileiro de todos os tempos.
Quem foi então Mario Peixoto e como chegou à realização desta obra única do cinema brasileiro e mundial? Nascido em 25 de Março de 1908, em Bruxelas, pertencia à alta burguesia brasileira, tendo entre os seus antepassados o comendador Joaquim Breves, que havia sido o maior plantador e exportador de café do Império (e também o maior traficante de escravos). Teve então no Brasil uma educação extremamente burguesa e em 1926 viajou para Inglaterra para estudar. Mas meses depois da sua chegada decide tornar-se actor (contra a vontade do pai que queria que seguisse a carreira de médico) e voltou ao Brasil, onde se envolveu então com os circulos de teatro e cinema do país. É importante notar que nesta altura no Brasil (como outros paises) verificava-se um fenomeno que criou novas oportunidades ao cinema nacional: o facto do cinema sonoro ter surgido criou num periodo especifico um entrave à aceitação de produções estrangeiras pelo publico. Este facto, aliado a uma maior discussão e teorização em grupos cinéfilos fez com que surgisse um certo impeto no cinema Brasileiro, resultando em 1929 em produções importantes como “Barro Humano” de Adhemar Gonzaga, “Sangue Mineiro” de Humberto Mauro ou “São Paulo: Sinfonia da Metrópole” de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny.

Mario Peixoto num papel secundário de “Limite”

Foi neste ano que Mario Peixoto decidiu voltar à Europa, agora a Paris, de forma a ter a possibilidade de visionar obras a que tinha dificil acesso no Brasil de cinematografias como a soviética, a francesa ou a alemã. Nas suas próprias palavras, para “estudar a coisa”. E foi também nessa viagem que segundo ele, nasceu a ideia que levaria à realização deste filme. Um dia ao ir encontrar-se com familiares à Gare du Nord, reparou na capa da revista Vu exposta num quiosque: um rosto de mulher, de frente, olhar fixo com duas mãos masculinas algemadas em primeiro plano. Foi esta foto de André Kertézs que, segundo o realizador, gerou todas as outras imagens do filme.

Capa da revista Vu que serviu de inspiração ao filme

Nos meses seguintes escreveu o argumento de “Limite”(concluido no inicio de 1930, já no Brasil), do qual não pretendia ser o realizador. Convidou primeiro Adhemar Gonzaga e posteriormente Humberto Mauro para essa tarefa, mas a resposta de ambos foi idêntica: o argumento (que estava detalhado ao pormenor) era tão tão único e diferente que só quem o tinha escrito o poderia filmar. Estas duas respostas negativas levaram-no então a decidir realizar o filme.

Imagem de abertura de “Limite” inspirada na foto de André Kertézs

Sobre o filme propriamente dito, a sua história é relativamente simples: começa por nos apresentar três pessoas, um homem e duas mulheres, num pequeno barco no mar alto. Já sem agua, debaixo de forte sol e prestes a ficar sem comida, apresentam-se no extremo da desolação. O restante do filme mostrará através de sucessivos flashbacks o que levou cada um deles a esta situação de isolamento da sociedade, concluindo então com uma (certa forma de) resolução.


O que torna torna o filme tão especial é o cuidado, o planeamento e sensibilidade colocados em cada plano, na sua interacção com a banda sonora (apenas musical), na utilização de meios puramente cinematográficos (de uma forma que para mim se aproxima da magia) para expressar este sentimentos de aprisionamento, desolação e fuga (diria que tão louca como o amour fou nos filmes surrealistas) da sociedade. É para mim dificil encontrar paralelos no cinema para a expressão destes sentimentos com esta força. Talvez só na fuga de Karin no fim do “Stromboli” ou no suicidio de Alain Leroy no “Le Feu Follet”. Mas esses são filmes diferentes.
Este é um filme que deve ser o minimo explicado e não o tentarei adiantar mais. Como afirma o próprio Peixoto, a experiência oferecida por “Limite” não pode ser adequadamente capturada pela linguagem, mas foi feita para ser sentida. Para ele o expectador deve ser subjugado às imagens como “angustiantes acordes de uma sintética e pura linguagem de cinema”. O seu filme é como um “grito almejando ressonância ao invés de compreensão”. Para ele “o filme não ousa (ou não quer) analisar. Ele mostra. Ele se afirma como um diapasão, capturando o fluxo entre passado e presente, detalhes de objetos e contingências como se sempre tivesse existido nos seres e nas coisas, ou destes se desprendendo tacitamente”.


Para terminar acho importante apontar que “Limite” (e é um ponto que penso que deve ser tido em conta ao vê-lo) foi duramente atacado pelo realizador seguinte deste ciclo, Glauber Rocha, que considerou Mario Peixoto como “longe da realidade e da história” e o filme como “incapaz de compreender as contradições da sociedade burguesa”, uma “contradição historicamente ultrapassada” e “uma produção da burguesia intelectual decadente”. Será pois especialmente interessante ver os dois filmes em sequência como está programado.

Edgar Brazil (Director Fotografia) e Mário Peixoto na rodagem de “Limite”


Paulo Soares

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tertúlia de Cinema V

Tema: Cinema Brasileiro

1º Limite (1931)

Realizador: Mario Peixoto
Ficha técnica no IMDB

Trailer:




Sugestão de Paulo Soares
A ter início a 15 de Junho de 2011





2º Deus E O Diabo Na Terra Do Sol (1964)

Realizador: Glauber Rocha
Ficha Técnica no IMDB

Trailer:




Sugestão de Danilo Donzelli Alves
A ter início a 22 de Junho de 2011





3º Macunaíma (1969)

Realizador: Joaquim Pedro de Andrade
Ficha Técnica no IMDB


Trailer:



Sugestão de O Projeccionista
A ter início a 30 de Junho de 2011

terça-feira, 31 de maio de 2011

The Big Red One (1980)


Samuel Fuller foi cabo na 1 ª Divisão de Infantaria, conhecida como "The Big Red One", que entrou em acção na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Este filme autobiográfico narra as experiências e sentimentos de um soldado de infantaria. Embora Fuller tenha feito outros filmes de guerra como The Steel Helmet (1949), Baionetas Caladas (1951) e Merrill's Marauders (1961) - The Big Red é o clímax da sua carreira no que diz respeito a este género.
O Sargento (Lee Marvin) é um soldado veterano que lutou na Primeira Guerra Mundial e, mais uma vez, luta contra os alemães. Agora ele conta com uma série de novos recrutas, a quem diz "Nós não somos assassinos, nós matamos." Os jovens protagonistas sob o seu comando, apelidados de "Sergeant's four horsemen", são Griff (Mark Hamill), um atirador de elite que congela durante os combates; Zab (Robert Carradine), um escritor que já teve um livro publicado e que vai passando o tempo reunindo impressões sobre a guerra; Johnson (Kelly Ward), um criador de porcos, e Vinci (Bobby Di Cicco), um rapaz da rua italiano.
Seguimos este grupo através de uma série de encontros com o inimigo - nos desertos da África onde os tanques alemães detêm o poder, na Praia de Omaha, com suas águas cheias de sangue, através de batalhas em França, Bélgica, Alemanha, e um encontro final com a morte num campo de concentração na Checoslováquia.
Fuller afirmou que "a verdadeira glória da guerra é sobreviver." The Big Red One concentra a sua atenção no trabalho dos atiradores, cujo dia a dia é composto por um enorme desgasto fisíco, medo e uma descrença enorme sobre que está a acontecer. Há muito poucos homens destemidos na guerra e muitas vezes os mais loucos acabam por ser os melhores lutadores. A representação de Lee Marvin do sargento que aceita o seu anonimato e as ironias de limitar o horizonte para os próximos 500 metros é uma das suas interpretações mais bem conseguidas. Os jovens soldados sentem a bondade de Marvin por trás de um exterior áspero.. Cena após cena, o sargento e a sua equipe superam o terror que paira no ar.
Em 1980, depois de 30 anos a dirigir filmes, Samuel Fuller iria fazer aquilo que se esperava ser a sua obra-prima, com base nas próprias experiências na Segunda Guerra Mundial e a premissa não podia ter sido melhor. A versão de Fuller era um épico de quase quatro horas. Certamente teria sido o ponto mais alto de toda a sua obra. Apenas não foi porque o estúdio resolveu cortá-lo para 2 horas, acrescentando a narração, e uma nova banda-sonora que Fuller não aprovou.
Teria sido lindo ver Fuller nomeado para os óscares com este filme, mas a triste verdade é que era uma época má para os filmes da Segunda Guerra Mundial na bilheteria. Os filmes do Vietname Apocalypse Now, O Caçador e O Regresso dos Heróis tinham todos sido lançados recentemente, e o assunto da Segunda Guerra Mundial parecia um estar bastante fora de moda. Mas The Big Red One é tão bom ou melhor filme de guerra como os mencionados, pessoalmente até o considero o melhor filme de guerra de sempre, mas isto sou apenas eu a divagar.
The Big Red One recebeu algumas críticas bastante respeitáveis e desapareceu, assim como a maioria dos filmes de Fuller.

Francisco Rocha / My One Thousand Movies

domingo, 22 de maio de 2011

Shock Corridor (1963)

Aqui está Fuller com tudo o que o torna Fuller: in your face, directo, cru mas esteticamente cuidado (cuidado no seu descuidamento, diga-se), sem medo de ir onde quer ir nem de fazer o que é preciso para lá chegar. Shock Corridor é metafórico, subversista, e, tal como Fuller fez por exemplo no espantoso White Dog, é um filme que acaba por ir muito além do que aquilo que a história conta.
A premissa é, por si só, espectacular: um jornalista, Johnny, obcecado em ganhar o Pullitzer decide infiltrar-se num hospício e misturar-se entre os seus pacientes, de forma a desvendar um assassinato que lá ocorreu. O mistério que surge no início do filme rapidamente é colocado em segundo plano, e Fuller concentra-se naquilo que mais interessa: o hospício como a América (o mundo?), louca na sua mescla de ideias, correntes de pensamento e ambição desmedida. “América para americanos!”, grita a certa altura o nazi negro do filme, antes de colocar um capuz do Klux Klux Clan, na cena talve mais simbólica de todo o filme. “Deus enlouquece primeiro aqueles que quer destruit”, lê-se a certa altura no ecrã. Se assim é, toda a América e todo o mundo sofre a ira de Deus.
Os três pacientes que o jornalista entrevista são um verdadeiro golpe de génio, representando cada um deles um medo tipicamente americano: a xenofobia, o medo das armas nucleares, e o racismo. Temos um louco que foi capturado pelos Coreanos durante a guerra e convertido por estes ao comunismo, até outro prisioneiro o reconverter aos ideais Americanos. Quando regressa à América, é colocado de parte, e refugia-se na sua mente, onde é um General que combate na Guerra Civil (onde americanos matam americanos… por diferentes ideias). Temos também o genial Dr. Boden, que fez parte da equipa que desenvolveu a bomta atómica mas que agora é uma criança de seis anos que gosta de brincar com lápis-de-cera. E claro, o mais espantoso de todos os pacientes: Trent, o primeiro jovem negro a ser aceite numa Universidade, que não soube lidar com a pressão e se torna naquilo que os seus inimigos eram: um supremacista branco. Ataca outros pacientes negros, tem uma máscara do Klux Klux Klan, e diz monólogos onde fala dos brancos como superiores e de uma América para americanos. Só Fuller teria feito algo assim. O jornalista é, por si só, um símbolo andante do desespero pela fama e dinheiro, um ideal tipicamente americano (é, afinal de contas, o país de onde brotou o culto pelas estrelas de cinema…) e que Fuller descontextualiza e desmantela nesta Obra-Prima. É por isso que todo o filme é a preto-e-branco, à excepção dos segmentos que representam a loucura de cada um: cada um vê a cores apenas a sua própria ambição, a sua própria loucura, o seu próprio extremo. É neste espírito de egoísmo que vive a personagem principal, e é neste espírito que se vai tornando ela mesma num exemplo de loucura. Aquele corredor sem fim (a que uma personagem chama de “The Street”, em mais uma pérola de subversão Fulleriana), atravessa não só o asilo, mas também toda a América.
E há, claro, a sexualidade. Johnny foge aos encontros sexuais com a sua namorada, Cathy, e começa a certa altura a confundi-la com a sua irmã (por quem ela se fazia passar), que tenta justificar com o dinheiro a sua profissão de stripper, onde desconhecidos lhe dão a atenção que o seu namorado não dá. Será Johnny impotente? É possível. Talvez a sua obsessão pelo Pullitzer seja, aliás uma fuga a esse problema.
Visualmente, o filme é magnífico. Fuller usa planos em contra-picado e close-ups para tornar tudo ainda mais psicológico, estando o espectador constantemente a ver a reacção de Johnny a cada pedaço de loucura que lhe vai aparecendo à frente… até que, eventualmente, se começa ele mesmo a transformar naquilo que o choca.
O final, com Johnny apático, é genial porque resume na perfeição tudo aquilo que o filme diz. Cada um vive para a sua loucura (tudo o resto é a preto-e-branco), num corredor sem fim que se estente por toda a América. Johnny alcança o fim http://www.blogger.com/img/blank.gifda sua loucura, e chega ao fim do corredor ao concretizar a sua ambição: ganhar o Pullitzer, e desvendar o crime.
E o que esperava, então, no final do corredor? Nada. E é como um nada que o vemos no final, olhando para o vazio, sentado numa cadeira, apático a tudo o que o rodeia. Cada homem é feito da sua própria loucura, e quando esta chega ao fim, o que resta é o vazio. Deus enlouquece primeiro aqueles que quer destruir. Johnny enlouqueceu. Mas quando a razão da sua loucura foi destruída, também o foi ele mesmo. Afinal de contas, o que Fuller queria dizer era isso mesmo: o que seremos nós, senão loucos num mundo a cores?


Gonçalo Trindade / Ante-Cinema

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Pickup on South Street (1953)


Fuller era um provocador. Um cinico provocador aliás. Sabia como o mundo se tecia e sabia também que a fábula que Hollywood vendia se afastava, se possível, cada vez mais do mundo real. O mundo que ele vivera na pele. Talvez por isso a sua obra seja um constante desafio moral. Uma constante provocação ao seu patronato, ao seu público. A si mesmo. Muitos foram os titulos marcantes que desafiaram as convenções sociais durante a sua etapa como realizador. Mas o primeiro, o que definiu o estilo do homem sem medo, foi Pick Up on South Street. Aí Fuller passou o risco pela primeira vez. Meteu-se com a América numa época em que havia poucas coisas mais perigosas que desafiar a Pax Americana. E anunciou ao Mundo a sua voz.

É verdade que antes já tinha havido Bayonettes! e Park Row, duas obras fundamentais da alteração moral que vivia Hollywood com a popularidade do cinema noir de Huston, Hawks, Ray e Tourneaur. Mas, projectos pessoais como eram, perdiam nesse toque de provocação pura que fez do filme de 1953 um clássico absoluto. É dificil imaginar frase tão provocativa para a época como a que McCoy (um Richard Widmark em grande) lança em nome do próprio Fuller:“Are you waving the flag at me?”.
Questionar o patriotismo num filme de espionagem e numa era em que a Guerra Fria entrava no seu periodo mais quente era um salto arriscado. Mas funcionou. Pick Up on South Street tornou-se num filme icónico do genero e ajudou a desfazer alguns tabus à volta da relação entre os EUA e os agentes do Bloco de Leste. McCoy, o vulgar pickpocket (carteirista), não imagina a grandeza daquilo a que se enfrenta. Mas para um homem que enfria a sua cerveja no rio Hudson os conceitos de patriotismo e lealdade fazem pouco sentido (You will do business with a red, but I don’t have to believe them.). Ele é o anti-herói do noir por excelência porque actua sempre pensando em si mesmo, sem cair nos valores sociais que constituem o amén do entorno que o rodeia. Candy é a rapariga que se deixa seduzir pelo dinheiro mas que tem sempre aquele traço de tristeza no rosto por trair o seu país. Nela existe um peso na consciência. Em McCoy só um buraco no bolso das calças.

A narrativa arranca com um roubo vulgar de carteira, uma dessas acções vulgares que Hollywood desprezava, por mundanas, mas que fazem todo o sentido na obra fulleriana. Esse roubo de carteira só se torna importante porque inclui um microfilme com informações de inteligência que agentes comunistas infiltrados querem passar para fora dos Estados Unidos. Quando Candy, a amante do agente soviético, percebe, numa sequência memorável, que perdeu o microfilme e com isso a confiança do seu companheiro, a teia está lançada. Fuller transforma-a numa mulher disposta a tudo, uma mulher que está preparada para vender-se não pela pátria, mas pelo lucro pessoal. Do outro lado encontra um homem que não se importa de deixar-se comprar, mas sempre e quando o lucro seja dele. Nesse jogo de interesses não há moralismos nem “stars and stripes”. Há violência, despeito, dor e ressentimento com as rasteiras da vida, as mesmas que atiraram Candy para os braços de Skip, as mesmas que fizeram de McCoy quem ele é, um homem consumido pelo egocentrismo que esconde o seu particular ódio à pátria. Para McCoy o microfilme só se torna realmente importante quando Skip e Moe se enfrentam, silenciosamente, num desfiladeiro sem regresso. Para Candy esse é o momento em que deixa de fazer qualquer diferença. Talvez por isso os desencontros que os marcam sejam também espelho dos eternos desencontros entre americanos e soviéticos. Talvez por isso também o olhar de McCoy e Candy sejam como a cortina, de ferro.Fuller filmou Pick Up on South Street no seu habitual registo recorde. Preferiu a belissima Jean Peters às mais celebres Marilyn Monroe ou Ava Gardner porque tinha um estilo de rua que o seduzia. Entregou a Widmark e Ritter as sequências mais impactantes e os dois actores não o desiludiram. O filme marcou o seu ponto alto na Fox que lhe permitiu voltar a roçar os limites nos filmes seguintes, The House of Bamboo e Forty Guns, talvez cinematograficamente ainda mais complexos. Mas Pick Up on South Street foi, também, um filme que abriu um estilo próprio do qual, 60 anos depois nomes como Tarantino ainda bebem vorazmente.


Miguel Lourenço Pereira / CINEMA