domingo, 22 de maio de 2011

Shock Corridor (1963)

Aqui está Fuller com tudo o que o torna Fuller: in your face, directo, cru mas esteticamente cuidado (cuidado no seu descuidamento, diga-se), sem medo de ir onde quer ir nem de fazer o que é preciso para lá chegar. Shock Corridor é metafórico, subversista, e, tal como Fuller fez por exemplo no espantoso White Dog, é um filme que acaba por ir muito além do que aquilo que a história conta.
A premissa é, por si só, espectacular: um jornalista, Johnny, obcecado em ganhar o Pullitzer decide infiltrar-se num hospício e misturar-se entre os seus pacientes, de forma a desvendar um assassinato que lá ocorreu. O mistério que surge no início do filme rapidamente é colocado em segundo plano, e Fuller concentra-se naquilo que mais interessa: o hospício como a América (o mundo?), louca na sua mescla de ideias, correntes de pensamento e ambição desmedida. “América para americanos!”, grita a certa altura o nazi negro do filme, antes de colocar um capuz do Klux Klux Clan, na cena talve mais simbólica de todo o filme. “Deus enlouquece primeiro aqueles que quer destruit”, lê-se a certa altura no ecrã. Se assim é, toda a América e todo o mundo sofre a ira de Deus.
Os três pacientes que o jornalista entrevista são um verdadeiro golpe de génio, representando cada um deles um medo tipicamente americano: a xenofobia, o medo das armas nucleares, e o racismo. Temos um louco que foi capturado pelos Coreanos durante a guerra e convertido por estes ao comunismo, até outro prisioneiro o reconverter aos ideais Americanos. Quando regressa à América, é colocado de parte, e refugia-se na sua mente, onde é um General que combate na Guerra Civil (onde americanos matam americanos… por diferentes ideias). Temos também o genial Dr. Boden, que fez parte da equipa que desenvolveu a bomta atómica mas que agora é uma criança de seis anos que gosta de brincar com lápis-de-cera. E claro, o mais espantoso de todos os pacientes: Trent, o primeiro jovem negro a ser aceite numa Universidade, que não soube lidar com a pressão e se torna naquilo que os seus inimigos eram: um supremacista branco. Ataca outros pacientes negros, tem uma máscara do Klux Klux Klan, e diz monólogos onde fala dos brancos como superiores e de uma América para americanos. Só Fuller teria feito algo assim. O jornalista é, por si só, um símbolo andante do desespero pela fama e dinheiro, um ideal tipicamente americano (é, afinal de contas, o país de onde brotou o culto pelas estrelas de cinema…) e que Fuller descontextualiza e desmantela nesta Obra-Prima. É por isso que todo o filme é a preto-e-branco, à excepção dos segmentos que representam a loucura de cada um: cada um vê a cores apenas a sua própria ambição, a sua própria loucura, o seu próprio extremo. É neste espírito de egoísmo que vive a personagem principal, e é neste espírito que se vai tornando ela mesma num exemplo de loucura. Aquele corredor sem fim (a que uma personagem chama de “The Street”, em mais uma pérola de subversão Fulleriana), atravessa não só o asilo, mas também toda a América.
E há, claro, a sexualidade. Johnny foge aos encontros sexuais com a sua namorada, Cathy, e começa a certa altura a confundi-la com a sua irmã (por quem ela se fazia passar), que tenta justificar com o dinheiro a sua profissão de stripper, onde desconhecidos lhe dão a atenção que o seu namorado não dá. Será Johnny impotente? É possível. Talvez a sua obsessão pelo Pullitzer seja, aliás uma fuga a esse problema.
Visualmente, o filme é magnífico. Fuller usa planos em contra-picado e close-ups para tornar tudo ainda mais psicológico, estando o espectador constantemente a ver a reacção de Johnny a cada pedaço de loucura que lhe vai aparecendo à frente… até que, eventualmente, se começa ele mesmo a transformar naquilo que o choca.
O final, com Johnny apático, é genial porque resume na perfeição tudo aquilo que o filme diz. Cada um vive para a sua loucura (tudo o resto é a preto-e-branco), num corredor sem fim que se estente por toda a América. Johnny alcança o fim http://www.blogger.com/img/blank.gifda sua loucura, e chega ao fim do corredor ao concretizar a sua ambição: ganhar o Pullitzer, e desvendar o crime.
E o que esperava, então, no final do corredor? Nada. E é como um nada que o vemos no final, olhando para o vazio, sentado numa cadeira, apático a tudo o que o rodeia. Cada homem é feito da sua própria loucura, e quando esta chega ao fim, o que resta é o vazio. Deus enlouquece primeiro aqueles que quer destruir. Johnny enlouqueceu. Mas quando a razão da sua loucura foi destruída, também o foi ele mesmo. Afinal de contas, o que Fuller queria dizer era isso mesmo: o que seremos nós, senão loucos num mundo a cores?


Gonçalo Trindade / Ante-Cinema

1 comentário:

  1. Em relação ao White Dog ainda bem que não o escolheste porque já tinha planeado ver esse durante este mês dedicado a Fuller. E assim provavelmente não tinha descoberto este magnífico Shock Corridor. (Ambos os filmes valem muito a pena claro e percebo o dilema :P)

    Adoro a temática da mente humana. Um homem a a infiltrar-se num manicómio é sem dúvida um teste que pode ser muito severo para a nossa mente e tal como se supunha foi.

    Lembrou-me uma BD que gosto muito, o Asilo Arkham, sendo obviamente diferente.

    E nota-se a influência que teve no Shutter Island de Scorscese :)

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