sábado, 30 de abril de 2011

Céline et Julie Vont en Bateau (1974)



O ano é 1974 e enquanto Portugal começava uma revolução militar, em França terminava uma revolução cultural. Os artistas da Nouvelle Vague disparavam os últimos cartuchos de criatividade contra uma indústria que se descaracterizava a passos largos. O golpe final chega de barco. Se os quatrocentos golpes dados por artistas como Chabrol, Demy, Godard, Renoir, Resnais, Rohmer, Truffaut, e Varda não bastaram, Rivette iria mostrar que ao fim de quase vinte anos ainda era possível ser diferente.

Julie está a ler um livro de magia no jardim quando passa uma mulher a correr que deixa cair algo. Chama-se Céline e por acaso é ilusionista. Julie vai atrás dela numa perseguição indiscreta e depressa as suas vidas estão irremediavelmente ligadas. Céline afasta Guillou, a única distracção de Julie, e quando a tem só para si uma interminável aventura cheia de mentiras e ilusão de parte a parte vai começar.

Não parece, mas o filme tem um pouco mais de três horas. Devido a toda a atmosfera mágica, envolvente e irresistível vai ser visto de uma só vez - não há como escapar a esta narrativa - mas fica o alerta para não afectar compromissos na vida real.
Céline e Julie são duas mulheres fora do vulgar, mas o mundo delas é surreal. Os seus pensamentos como que estão ligados e, além de partilharem memórias, as mentiras de uma são corroboradas pela outra. São duas crianças perdidas num mundo de adultos, que ainda encontram prazer nos actos simples da vida como comer um caramelo e conseguem criar uma elaborada mentira a partir de um acontecimento real. E finalmente há aquela casa e os acontecimentos que lá se sucederam e se repetem infinitamente quando comem o doce que as deixa zonzas num alusão óbvia a drogas.
A metáfora dos frascos com doces e das garrafinhas pode ser considerada uma referência à louca fábula de "Alice in Wonderland", mas cinematograficamente é mais próximo de Buñuel com muita sátira social, política e até cinematográfica.

No início o som ambiente é maioritariamente proveniente das ruas de Paris, autênticas e parte integrante do filme. As pessoas da realidade são os pretenciosos artistas parisienses (não há palavras para descrever os espectáculos de magia), mas nem a cidade nem as pessoas importam nesta história com duas protagonistas. Sâo elas que fazem o filme desdobrando-se em múltiplas personalidades de acordo com um argumento tipicamente francês e que roça a perfeição. A montagem também tem momentos sublimes, mas então a realização... essa é tão grandiosa que não dá nas vistas, permitindo a cada componente brilhar por si.

O filme foi feito com poucos meios financeiros, mas tem uma enorme riqueza de conteúdo. A forma de contar a história é indiscutivelmente cinematográfica, mas totalmente diferente do que era feito. O golpe final é quando as personagens se tornam espectadoras e o espectador fica sem saber qual o seu lugar. Magnífico.

Nuno Reis / Antestreia

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