terça-feira, 12 de abril de 2011

Nouvelle Vague

Resumir um movimento com a relevância artística, histórica e humana da Nouvelle Vague num ciclo de apenas três filmes é uma tarefa no mínimo ingrata. Seria algo demasiado fácil escolher, quase como quem escolhe três bolas do interior de um saco com dezenas, os três filmes mais populares de François Truffaut e Jean-Luc Godard (os dois nomes mais facilmente associados a esta corrente), daí que a opção tenha recaído sobre três filmes menos famosos, por assim dizer, de três cineastas igualmente importantes e influentes. Os três filmes sugeridos (“Le temps d'un Retour”, “Un Homme et une Femme” e “Céline et Julie Vont en Bateau”) devem ser vistos como uma amostra daquilo que a Nouvelle Vague significou e continua a significar, e essencialmente como uma motivação para descobrir continuamente novos filmes do extenso espólio que um grupo muito particular de criadores produziu durante pouco mais de duas décadas.


De todos os movimentos cinematográficos, tenham eles sido oficialmente declarados como tal ou não (a Nouvelle Vague não o foi), talvez seja este o que maior, mais profundo e prolongado impacto teve no cinema como arte e no processo de fazer filmes. Olhar para o que o cinema é hoje, como veículo de histórias mas também de expressão de individualidade, é olhar para o que os pais da Nouvelle Vague fizeram nas décadas de 50 e 60. E, apesar de frequentemente se considerar que esta teve o seu expoente entre 1958 e 1964, o seu legado no cinema foi ininterrupto ao longo das décadas seguintes e, hoje, basta ver um filme de realizadores tão díspares como Quentin Tarantino ou Wong Kar-wai, para se perceber que este se mantém transversal ao tempo e à geografia.


Nascida, no pós-guerra, como resposta à rigidez e classicismo do cinema dos anos 40, a origem da Nouvelle Vague está intimamente ligada à de uma publicação que perdura até aos dias de hoje. Fundada em 1951 por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca, a Cahiers du Cinéma e os seus jovens intelectuais críticos, que haviam crescido a ver grandes obras do cinema americano, não disponíveis antes da II Guerra Mundial, defendiam uma forma diferente de fazer cinema, em que a narrativa não funcionasse como limitação mas como ponto de partida para uma experimentação sem limites. O estilo de montagem clássico é, então, rejeitado, dando lugar à mise-en-scène, que privilegia a realidade do que está a ser filmado e não o artificialismo causado pelo uso excessivo da montagem, bem como o uso de jump cuts (um tipo de corte em que determinada sequência apresenta dois planos semelhantes, tirados de posições muito próximas, dando a sensação de que o que estamos a ver “salta”), takes longos, luz natural ou rodagens em cenários reais. Mas, mais importante que qualquer técnica, o que este grupo de jovens trouxe de revolucionário foi a noção de que os filmes deveriam ser principalmente formas de expressão e que por isso deveriam possuir uma identificabilidade pessoal, única ao seu criador. O crítico americano Andrew Sarris referiria-se a esta individualidade no cinema como “teoria do autor”. Desnecessário será dizer que, também ela, continua a aplicar-se hoje.


Entre os críticos da Cahiers du Cinéma encontravam-se nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette. Todos eles possuíam um conhecimento teórico do cinema e da sua história inigualável, mas pouco ou nada sabiam acerca do processo prático de produção. Se a esta manifesta falta de experiência juntarmos a falta de recursos e dinheiro aquando das suas iniciações como realizadores, estava completo o ambiente perfeito para o florescimento das suas visões e ideias: uma falta de recursos imensa mas também uma liberdade absoluta. É a partir desta liberdade, irreverência e entusiasmo típico da juventude que este grupo de sonhadores começa a fazer os seus próprios filmes, certamente sem a presunção de sequer imaginar que estavam a mudar a história do cinema.


É em 1959 que o primeiro filme da Nouvelle Vague se dá a conhecer ao mundo (isto apesar de muitos considerarem “Le beau Serge” (1958), de Claude Chabrol, a primeira longa-metragem do movimento). Chamou-se “Les quatre cents coups” e foi o filme de estreia de Truffaut, definindo por isso o seu cinema de forma perfeita: auto-biográfico, sentimental mas nunca lamechas e de uma inocência e realismo poéticos. No ano seguinte surge aquele que será, eventualmente, o filme mais lembrado e citado da Nouvelle Vague: “À bout de soufflé”, de Godard, maravilhou o mundo pela sua energia e sensualidade não antes vistas, pela forma única como Godard filmara Paris e pelo romantismo melancólico da sua história. Como comecei por dizer, Truffaut e Godard são os dois nomes mais mencionados do movimento e não o são por acaso. Mas a verdade é que são muitos os restantes artistas que contribuíram imensamente para a riqueza deste: da naturalidade de Rohmer, ao experimentalismo de Rivette, ao suspense de Chabrol, sem esquecer a influência de nomes essenciais como Alain Resnais, Jacques Demy, Agnès Varda, Chris Marker, Jean Eustache, Claude Lelouch, Jean-Pierre Melville, Louis Malle, etc., a Nouvelle Vague foi feita por todos eles, quer surjam creditados como protagonistas ou não.


Descobrir o cinema de cada um deles deve ser, sem excepção, uma quase obrigação para qualquer cinéfilo que aspire a compreender o cinema como arte que rejeita e deve rejeitar toda e qualquer imposição ou compromisso. Os três filmes que perfazem este ciclo serão um ponto de partida tão bom como qualquer outro.


Pedro Ponte / Ante-Cinema

4 comentários:

  1. Parabéns pelo texto de introdução, está muito bom. Gostei do facto da escolha ter incidido em três filmes menos conhecidos da Nouvelle Vague.

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  2. Por acaso tenho andado a postar alguns menos conhecidos no meu espaço :)

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  3. Excelente blog, novo e com empolgação. Voltarei aqui sempre.

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  4. Projeccionista fugiram todos aos 400 golpes e por ai fora. O que por um lado é bom para dar a conhecer filmes menos populares e que acredito serem muito interessantes

    Chico parece que os blogs andam em sintonia.l Terror italiano na altura do teu ciclo fantas e agora estes :P

    Enaldo, Obrigado espero que continues a passar por cá.

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