quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Blood Simple


Com a estreia do mais recente filme dos irmãos Coen nas salas de cinema, nada melhor do que revisitar, aqui na tertúlia, o primeiro filme destes dois irmãos, "Blood Simple". Foi tudo pensado de início evidentemente e está longe de ser uma coincidência dos diabos.

Se calhar não me devia alongar tanto sobre a história, mas gostava de salientar alguns pormenores e visto ser uma tertúlia assumo que os que lêem viram o filme e daí não me preocupar com spoilers.

O filme tem início com a fuga de Abby (Frances McDormand) e Ray (John Getz) um empregado de um bar. As coisas nunca são fáceis com os Coen e por isso mesmo o dono desse bar, um tal de Marty (Dan Hedaya), só podia mesmo ser o marido de Abby.
Marty desconfiado destes dois tinha previamente contratado um detective privado, Loren Visser (M. Emmet Walsh), que lhe traz todas as provas de que ele precisava, para confirmar as suas suspeitas.

A premissa é como a de muitos outros. Uma traição, um marido enfurecido e o desejo por vingança. Até aqui tudo normal e bastante cliché, mas estes são os Coen e rapidamente o enredo envereda por caminhos traiçoeiros.

Que Marty não seria capaz de superar a traição, não surgirá como uma surpresa, e daí a planear o homicídio da mulher e do amante são três passos (ou mesmo um).
Para esta tarefa volta a contactar Loren Visser. E é aqui que as coisas começam a ficar interessantes.
Visser começa a elaborar um plano mais seguro para si. Porquê arriscar-se a matar o novo casal quando pode matar Marty, ficar com o dinheiro e tornar-se o único nesta história a saber dos planos originais? Claro que não deixa de haver um homicídio por isso ainda falta atar essa ponta solta. O que é bastante fácil quando existe um casal de adúlteros cuja vida tem sido infernizada por Marty. Assim Visser rouba a pistola de Abby usando-a para matar Marty e assim a incriminar. Temos um plano na teoria perfeito, mas na prática as coisas nunca acontecem exactamente como planeámos inicialmente.


Uma das minhas sequências predilectas do filme começou quando Ray encontrou o corpo de Marty ao regressar ao bar. Todos nós temos uma espécie de bússola de moralidade. Quando Sam encontra o corpo alvejado e reconhece a arma de Abby, assume instantaneamente que a mulher que ama, acabou de matar o marido.
A questão que se coloca agora: O que fazer? O que é que cada um de nós faria nesta situação? Ray fez o que muitos apaixonados fariam. Encobriu o crime.
A cereja no topo do bolo surge quando Marty surpreendentemente acorda a meio do caminho. Afinal este não estava exactamente morto (lembrem-se de verificar sempre o pulso). E aqui é que a bússola dispara. Este é o problema de pisarmos certas linhas, por muito pouco que a tenhamos atravessado, depois de o termos feito não há volta a dar.
Uma coisa era ocultar um crime outra, completamente diferente, é cometê-lo. Mas Ray já pisou a linha, para ele é tarde demais.
A partir daqui nunca mais será o mesmo. Com a morte de Marty também uma parte de si morre no final da cena.

Depois seguem-se as paranóias. Ray não consegue dormir e começa a assustar Abby. A dada altura a presença de Marty começa a fazer-se sentir. Estará vivo afinal, será possível?

Saliento ainda a cena final entre Abby e o detective Visser que está carregada de tensão e é realmente muito boa. A mão do detective presa na janela por uma faca, foi absolutamente deliciosa e a sua gargalhada no fim, mesmo quando tudo estava perdido demonstra bem o tipo de criatura que este era.


"Blood Simple" tem claramente elementos noir, um complot bizarro, a perspectiva do criminoso, uma "femme Fatale" e lealdades instáveis. É obviamente um filme bastante diferente dos clássicos do género, uma versão mais moderna do noir que muitos apelidam de neo-noir.

É de salientar também a banda sonora de Carter Burwell, o tema principal do filme encaixa perfeitamente no ambiente noir do filme. Uma pareceria vitoriosa e por isso não é de estranhar que Burwell voltasse a trabalhar com os Coen.

Acho que é sempre de valor conhecermos o início de carreira dos realizadores que gostamos. Olhando para este "Blood Simple" e para um "No Country For Old Men", por exemplo, podemos ver que os Coen percorreram um grande caminho entretanto e no entanto a imagem de marca dos autores mantém-se, há uma alma nos seus filmes que os faz serem rapidamente reconhecidos, e são na minha opinião dois dos seus melhores trabalhos.

Gabriel Martins / Alternative Prison

3 comentários:

  1. Este é talvez o melhor noir desde "Touch of Evil" (é mesmo melhor que o Chinatown), e o meu filme preferido dos irmãos Coen.
    A minha paixão por este filme já vem de à muito tempo, desde que lí uma crítica bastante positiva ainda na década de 80. Segui-o durante algum tempo, até que o consegui ver finalmente, e com o passar dos anos tornou-se num verdadeiro filme de culto para mim.
    Esté é talvez o filme a cores que melhor reflecte a atmosfera do noir. Estão lá todos os ingredientes, e os dois protagonistas estão brilhantes.

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  2. Não consigo ir tão longe porque não conheço o género assim tão bem. Eu tinha visto este filme há uns anos atrás, quando saiu numa das primeiras colecções de DVD do Público, e não achei piada nenhuma na altura, era estranho demais. Mas agora, que já tenho outros gostos e vejo as coisas de outra forma, achei o filme genial e dentro da obra dos Coen está de certeza entre os melhores. Aliás, eu gosto mais da obra inicial deles do que o que fazem actualmente, apesar de continuarem a ser muito bons.
    Neste filme está lá tudo o que vemos nos seus filmes seguintes: personagens maradas q.b. (o detective é brutal), uma história muito boa e diálogos em que cada frase é uma delicia. E até vemos um dos planos que aparecem inúmeras vezes ao longo da carreira deles: falo daquele plano em que a câmara vem de cascos de rolha sempre em frente até chegar a um pormenor. Penso que a melhor utilização que fazem é no Arizona Júnior. Mas aqui, a forma como o fazem, com a câmara a passar por cima do bêbedo no bar é genial.

    Em suma, cada vez gosto mais dos Coen.

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  3. A paixão do Chico pelo Noir é bem notória e foi ele que me ajudou na escolha do filme.

    estive para escolher um Touch of Evil ou o The Killing. Tenho muita curiosidade em ver este noir do Kubrick em início de carreira. Mas depois de saber as escolhas do João e do Samuel acabei por achar que seria mais interessante ir para uma escolha mais moderna, daí este Blood Simple. E olhando para trás acho que foram 3 belas viagens pelo género, todas bastante distintas entre si.

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